Deixa eu te contar uma antiga história, tão triste como a cara de um cão vadio tentando dormir numa noite de frio:
Foi há muito tempo atrás (quanto anos não importam, a saudade tem o tamanho das eternidades) e eu era apenas um menino...
Não te surpreendas, estes cabelos agora ralos e esbranquiçados já tiveram a cor e o tamanho de uma noite sem lua que invade os espaços. A minha pele era lisa, mesmo que no rosto existisse já uma tristeza quase igual à essa que ainda vês agora...
Mas eu era sim, um menino triste que usava óculos e mal podia ver as coisas de longe (talvez mais um pouco do que consigo agora). E talvez sonhasse bem mais do que hoje porque as desilusões daquele tempo não eram velhas conhecidas como hoje o são...
O menino já conhecia o medo, o medo de apanhar do pai, da mãe, dos meninos da rua e da escola, medo da professora deixar sem saída depois das aulas, de roubarem as gudes que nunca aprendeu à jogar, de quebrarem os brinquedos que guardava com cuidado numa velha caixa de papelão, o medo de passar ridículo por amar uma menina bonita por lhe acharem tão feio, de se perder e não achar o caminho de casa por estar distraído, pois as nuvens eram tão bonitas pra ficar se olhando.
Tinha a casa pequena, que nem tinha luz. Tinha o poço que seu Cláudio fez porque não tinha água encanada. Não tinha padaria por perto, só pão no seu Pacheco ou na dona Castorina e se bobeasse o pão acabava. E o banho de mar em tempo de férias de fim de ano, com milho cozido e os caras passando de carrinho vendendo refrigerante, aquelas pipas feito avião feitas de isopor e aquelas pranchas de madeiras com remos que a gente remava pros dois lados. E a festa de São Pedro (meu Deus, que noite fria!) onde tio Carminho deixava eu entrar no meio da roda e correr atrás do coelho ou do porquinho-da-índia. E as festas juninas que tinham na escola e eu sempre me queimava com os fogos que meu pai comprava e eu não tinha tanto medo como devo ter hoje.
Tinha, afinal, tanta coisa...
Pois bem. Eu quero te contar, isso tudo foi embora, mas não foi, continua tudo na memória quase apagada desse velho, e, mais ainda nesse velho coração.
Eram coisas do menino, desde o tempo quando o lilás era outra cor e eu só sabia que era roxo...
(Extraído do livro "Muitos Dias Já Passaram" de autoria de Carlinhos de Almeida).
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