Escute, ó minha amada, esse barulho de lua que desce do alto da escuridão que nos cobre agora... É... Calor e frio se confundem, afinal de contas, a noite é assim, vem chegando de mansinho e, quando vemos, tudo já aconteceu...
Aliás, tudo acontece mesmo, bem e mal andando pelo mesmo caminho, trocando sérias impressões e engraçadas anedotas, misturados como as cartas que o jogador dará para que tudo comece.
Sim, cartas sim, meu amor! Cartas marcadas para um jogo sujo, muito sujo. (Ainda bem que os cheiros são uma outra história, senão vomitaríamos...). De um jogo covarde e às avessas que chamamos vida.
Sim, vida, algo tão simples e cruel, brincadeira de mau-gosto, mas o único bem que temos por enquanto. O único brinquedo da criança pobre, que mais cedo ou mais tarde, será quebrado. Vida, uma poça d'água aparentemente rasa, mas tão profunda em que todos se afogarão mesmo nos arriscando para matar a sede...
Está ouvindo? Eu não sou o bacurau que promete tristemente que virá amanhã e chegará atrasado, não, eu não sou. Não sou o corvo que pousa na lápide trazendo tristes previsões. O barulho que escutas, é nada mais nada, menos que o barulho sutil de meu ataúde que se abre. Eu sou o vampiro que buscará o sangue de todas as alegrias perdidas, voltem elas ou não...
Tenho medo, querida, do dia que nasce aos poucos, que vai clareando todas as realidades do mundo. As pessoas irão perdendo seu sono aos poucos, abrirão seus olhos pesados de uma falsa felicidade, de uma falsa alegria que o tempo vai comer aos poucos...
Alguns cães já ladram, os passarinhos começam a executar nosso inútil consolo. Tudo é belo e mesquinho, tudo é vão e passageiro, nada adiantou para os que voltam agora da farra, pois tudo há de se repetir sem consolo algum.
Os primeiros trabalhadores já vão apressados, vão sim, minha bela, procurar aquilo que não querem, o que nunca quiseram, uma felicidade fabricada e mentirosa que os malvados propagam em falsas verdades. Vão procurar mais do que precisam, aquilo que fará falta aos outros e o que nos aniquilará aqui e além...
Por isto, preste atenção, eu vejo hoje com o a mesma voz triste, com o mesmo jeito ranzinza e chato, te dizer: vive, vive um pouco mais, o tanto que puderes, o tanto que, presa do caçador, consigas fugir do teu tiro, mas sem medo do momento final.
Este é o grande segredo, não fugir das feridas, mas resistir aos gritos do corte; resistir às fraquezas, mas sem reclamo. São os nossos gritos que querem para sua coleção, os nossos gritos de desespero, não as nossas palavras mais sinceras, os nossos risos mais autênticos e as nossas mais fortes expressões de ternura...
Lembra sempre disso, minha amada, na roda do tempo somos imortais, mas apesar disso, somos um grande - nada...
(Extraído do livro "Eu Não Disse Que Era Poeira?" de autoria de Carlinhos de Almeida).
Nenhum comentário:
Postar um comentário