E em dias de sol ou de nenhum, tanto faz. Como movimentos automáticos os meus órgãos funcionam. Vejo a brisa, mas não há mais importância. Como os objetos que vemos até que invisíveis se transformam. Meus sentidos se transmutaram faz muito tempo. Lindas cores chegam até as minhas narinas e eu consigo respirar o dia.
A memória tenta me ajudar e acaba me prejudicando. São pequenas coisas e meus bolsos mal cabem. A dicotomia insiste em me oferecer seus fieis préstimos. E, de certa forma, acabo ficando magoado e sento na beira do caminho.
Mil perguntas ecoam em minha mente. Isso é apenas por praxe, nunca mais poderei responder todas elas. A porta da minha fala está fatalmente encerrada. não me pronunciarei nunca mais. Porém, para meu total desespero, meus olhos seguem abertos e sondam luzes e escuridões com a mesma intensidade de sempre.
Terei algo no final de tudo? Não sei, não imagino, não intuo mais nada. Os livros podem se desesperar quando assim o quiserem. O concreto foi mais sincero e minha rudeza acabou combinando como um arranjo de flores japonês. Silêncio completo sem meditação alguma.
Eu não sou estranho, eu sou o estranho, o que passa pelas ruas como o mais terrível dos caçadores que um ventre pode ter concebido dia desses. Eu caço imagens e gestos, ficarão todos guardados numa invisível eternidade e nenhum ladrão poderá roubar de mim.
Cada detalhe, cada nuance, faz parte agora de um quebra-cabeças eterno. Nada escapa de minha rede, permanecendo imóveis como insetos perplexos em minha grande teia. Nada perderam minhas vítimas, mas o que me deram tem seu preço mais alto. Eu sou o testemunha da consumação dos tempos, aquilo que vi e aquilo que nunca verei.
O chute acertado no gol que não existia, a flor colhida ao acaso, a jura de amor que não deu em nada. A beleza transformada em vulgaridade sórdida, o futuro promissor agora abortado, pequenos passos que cessaram mais adiante. Vivos e mortos em uma fantástica coreografia.
Uma febre daninha queima minha testa, muitos graus acima do permitido, é o que tenho agora. Delírios que brincam rimando enquanto meus tiques se acomodam na arruinada casa do meu corpo. Tudo se inverte e nem a morte sabe mais o que poderá fazer.
Há muitos anos, num tempo indeterminado que debocha da exatidão dos cálculos, acabei esbarrando com o acaso e ficamos bons amigos. Ele vem me visitar todas as vezes que pode, me traz notícias carregadas de minha perplexidade. Ele mal bate em minha porta e já vai entrando. Senta-se no velho sofá e começa à me falar de muitas novidades. Eu não faço perguntas, apenas escuto.
Tanto eu, quanto ele, gostaríamos que suas histórias tivessem um final mais feliz. Porém, sabemos que quando os atores são humanos, as histórias possuem finais mais desagradáveis, as setas são impulsionadas para falsos alvos e isso é o que podemos chamar fatalidade. Rios só vão em uma direção.
No tempo em que ele permanece comigo, evitamos de chorar. Tomamos o café que acabei de fazer e nos envenenamos de incontáveis cigarros. Sua chegada já é o prenúncio de sua partida, daqui alguns minutos ou depois de muitas horas, porém quando ele parte, a solidão chega.
Essa sim, é visita assaz maçante, mesmo tendo de todo jeito me agradar, não me traz surpresas como o acaso que acabou de partir, repete as coisas que falo como uma criança que acaba irritando outra. Não é culpa sua, eu bem sei, a solidão tem lá suas idiossincrasias e repetir tudo é uma delas. Alguns sábios disseram ser ela a melhor das companhias, pode até ser, mas ela me faz lembrar de certos mortos que enterrei no ontem e, por esse motivo, me vejo chorando.
Por vezes, por não me ver satisfeito com sua presença, ela também acaba indo embora e aí vem a rotina. Mulher sem modos e ranzinza, dona de uma razão inexistente, toca em minhas feridas e não se importa se ardem ou doem, se estão curadas ou não. Faz inúmeras perguntas que me deixam desorientado e debocha da minha cara se não posso respondê-las.
Qualquer horas dessas a febre aumenta, eu me transformo de vez em algo que eu nem mesmo o sei, talvez ache Rocinante comendo o mato que cresce nos fundos do meu quintal e o monte. Não será preciso sela alguma, nem arreios e nem nada. Irei em seu pelo em uma carreira desesperada mundo afora. Quer vir comigo escudeiro? Se não quer, fique aí mesmo com o controle remoto na mão mudando os canais da TV enquanto eu busco outras coisas mais importantes.
Quero prosseguir até não poder mais, agredir novamente os mercadores do templo, gritar até ficar rouco em todas as praças que existem no mundo, poderão avisar que há um louco solto por aí. Sim, eu sou um louco perigoso, talvez o mais perigoso de todos eles, algumas camisas-de-força me são insuficientes. Eu rio sem precisar de motivo algum para tal, bebo no copo de todos sem pedir licença alguma, beijo em todas as bocas sem qualquer explicação.
Foi culpa da alegria, foi sua culpa. Ela não vinha me visitar há muitos séculos, mas acabou deixando a preguiça de lado e veio. Veio como estava, desnuda, sem ao menos colocar as mãos para esconder algo com algum pudor. Veio e me disse que não teria prazo para embora, que a pressa ficou pelo caminho e esqueceu o meu endereço.
O dia permanece em seu afã, acordei cedo demais, quero dormir agora. Nem me importo mais se estou perdido entre as montanhas de mim mesmo...
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