sexta-feira, 24 de maio de 2019

Eu Nunca Fiz Um Blues

Tarefa assaz amarga esta, Maria, quem por acaso sou eu? Não tenho nenhuma aptidão musical, canto mal, ando escutando pouco e trocando as bolas, nunca serei. 
Quando muito, me lembro do tambor que toquei na escola, primeiro na época de jardim, depois nos tempos de ginásio e só. Até as fotos eu perdi, só tenho como falar, faltam-me as devidas provas.
Pois é, eu até que queria, mas nem as duas gaitas, nem a flauta doce e nem a guitarra, por último, tiveram sons alguns saindo de mim. Ficaram mudas mesmo, assim como a minha coragem, muda, calada, como a covardia que tenho pelos dias que correm.
Hoje tem um sol lindo, minha cara, e até fico aqui pensando, seria tão bom que os homens pudessem aproveitar alguma coisa desse presente. Parassem um pouco das torturas que se impõem voluntariamente, esquecessem seus bobos compromissos que não dão em nada.
Há coisas bem melhores para se fazer, sabe? Com um sábado desses poderiam encher as praças, levarem seus cachorros para um passeio inusitado, entrarem subitamente no meio da brincadeira dos filhos, coisas mais malucas e melhores por isso.
Poderiam até dar uma trégua nas guerras, quantas vidas seriam poupadas com um dia de alegria...
Mas voltemos ao que eu ia falar, okay? Sabe como é?  A idade já está mais que chegada e eu ando esquecendo direto tudo, às vezes até me estranho no espelho, tomo um susto, o tempo é inevitável e cumpre sua tarefa direitinho.
Um dia desses, uma garotinha me disse que a música preferida dela era blues. Fiquei surpreso, Maria! Não muito pela idade dela, sabe? O ser humano é assim mesmo, há muitas crianças disfarçadas de velho e o vice-versa aí acaba funcionando. Não fiquei surpreso por isso, fiquei surpreso pelo gosto mesmo...
Seria uma boa ideia, uma boa ideia, fazer um blues. Não é que seja meu estilo favorito, sabe? Mas eu gosto bastante. É que blues me lembra tristeza e eu tenho passado muitos dias tristes.
Pode ser isso, não acha? Muita tristeza misturada com saudade dá nisso. Os problemas do dia a dia, alguns pequenos, outros maiores, como todo mundo tem mesmo. Mas uma saudade muito grande, principalmente de você. O tempo vai chegando, chegando e muita gente que a gente ama vai partindo, partindo... Não só pessoas velhas, o que é menos incomum, mas pessoas que a gente nunca pensou que iria embora, gente que a gente viu e falou outro dia desses.
As nossas previsões, por mais certas que pareçam, mais matemáticas, acabam dando errado. E aí já viu, né? O meu tempo que fica cada vez mais escasso acaba indo embora. Mas algumas vezes, talvez um pouco menos que deveríamos, poderíamos pensar.
Não, não, não precisa me avisar que pensar pode ser perigoso, isso eu sei e muito bem. Os malvados acabam colocando seus espiões em nossos dias. Pensar chega à ser uma grande temeridade, descobrir quem nos faz chorar uma verdadeira afronta, tentar ser feliz de qualquer modo, é pior ainda.
Mas voltando ao que eu queria falar, minha cara, fazer um blues seria muito bom. Fico imaginando a cena, vem como um vídeo em minha mente ou pelo menos uma fotografia. Uma noite meio agradável e calma, como essas que só os verões podem nos dar (eu sei que estamos em dias tão frios...). Um desses barzinhos que aparecem em filmes meio antigos e lá no fundo os músicos tocando.
O que eles estão tocando? O blues que eu finalmente consegui fazer. Se fosse um blues mais ou menos alegre, seria até bem melhor, menos triste do que eu ando, Maria, sem tantos versos chorosos como faço, minha cara.
E quando a música acabasse, todos bateriam palmas, apesar da plateia ser pequena, todos de pé. E eu com um sorriso enigmático levantando meu copo, saudando a vida que ainda me quer...

(Extraído do livro "Muitos Dias Já Passaram" de autoria de Carlinhos de Almeida).

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