terça-feira, 14 de maio de 2019

As Coisas Que Eu Queria

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Sabe aquelas coisas, maninho? Aquelas que doem mais pela sua ausência do que as outras? Pois é, a minha alma consegue doer bem mais que meu corpo, como isso me aflige...
Gostaria de acordar um dia, apenas um dia que fosse, olhar se o sol ainda continua lá, se os passarinhos cantam e sentar na frente de uma televisão ou então conectar a internet e estranhar. Estranhar o que, maninho?
Estranhar que, por enquanto, pelo menos por enquanto, tudo vai indo bem. Não houve nenhuma catástrofe da natureza criando novos corpos e derrubando sonhos. Outra guerra sem motivo não foi declarada e até aconteceu algum cessar-fogo por aí. Seria tão bom que não houvesse mais um escândalo recente na política do meu país, que continuassem os procedimentos legais com os desonestos que já temos (e não são poucos).
Estranhar que a fome diminuiu, a doença acabou dando um tempo, que os agentes funerários acabaram tendo um dia de folga porque a violência não lhes desse alguma freguês pelo dia de hoje. Que foi decretado em caráter irrevogável que todos os dias serão carnavais dependendo só da alegria dos foliões. Que as carpideiras coletivamente estavam se aposentando por falta de serviço e que os mentirosos acabaram passando para o lado da verdade. Eu sei que são absurdos, mas eu queria tanto...
Outra coisa, gostaria de olhar na frente do espelho sem o medo que sinto todos os dias. Perceber que não há mais uma nova ruga pra me lamentar, que ando algum sorriso sem ao menos perceber.
Gostaria também de sentir falta do meu medo, desse medo teimoso que me faz andar pela rua olhando para todos os lados, com medo de ser roubado, com receio de ser criticado pelo que fiz e muito mais pelo que deixei de fazer. Pode cumprimentar um estranho e ele não me olhar de cara feia, afinal nem sei de seus problemas para tentar ser solidário como quase sempre não sou...
E o que mais, maninho?
Queria acreditar que o que acreditei sempre é digno de crédito, olhar novamente para um canto desarrumado do meu quarto e descobrir que muitas coisas que perdi, por um milagre qualquer, estão lá! Meus brinquedos perdidos, as histórias que não pude acabar de contar, o riso que não dei, os beijos que me negaram e os sins que não vieram porque nem mesmo perguntei...
A maldade acabou! Veja só como seria tão bom, maninho querido...
Outra coisa bem legal, meu querido. Se os tolos reconhecessem sua tolice e as pessoas deixassem de ser perseguidas porque são como são, pelo que acreditam, pelo que têm, pelo que amam. Vida e morte sendo reconhecidas, finalmente, como os dois caminhos que o destino tem para nos oferecer...
Passarinhos caprichando mais seus cantos porque estão livres das gaiolas, cachorros latindo com mais satisfação, gatos dormindo com mais preguiça sobre os muros e os telhados, as praças com mais crianças do que o habitual, o mar não servindo mais de lixeira, as flores recebendo as abelhas para seu rotineiro milagre, as árvores efetuando seu grandioso papel...
São essas coisas, maninho, coisas simples e que, por serem simples, são recusadas pelos seres mais idiotas que existem neste planeta - nós. Coisas que no final não dariam grana, para honra aos capitalistas e glória aos burgueses.
São essas coisas, maninho, apenas das muitas que eu queria ter e ver. Agora que eu te falei, deixa eu deitar, virar para o canto da parede e chorar...

(Extraído do livro "Eu Não Disse Que Era Poeira?" de autoria de Carlinhos de Almeida).

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