
Ela,
a bandida, a malvada, a dona de lugares-comuns que se repetem em tristes
histórias que insistem de acontecer várias vezes. Ela, a maldita, a ingrata, a
pirata, que vem saqueando as cidades costeiras de meu sentimento de quase bom
burguês. Ela, o deboche, o delírio, o caso não pensado que me fez chamar a
atenção dos que estavam com pressa no seu dia a dia sem graça de céus cinzas e
previsões baratas. Ela, a debochada, a cínica, a maluca, a que modifica minhas
palavras antes que nasçam no peito e sejam vomitadas em qualquer chão. Ela, a
sem nexo, a sem dó, a febre alta que me faz ter convulsões de alto risco e ser
notícia nos santuários das pequenas telas que maltratam os homens e destroem
coisas. Ela, a tempestade, o raio, a espuma de incontáveis mares nunca antes
navegados na minha inexperiência de bom menino e de mau menino também. Ela, o
alvo que conhece, a inocência que engana, a trama que se inverte, o pecado do
santo e a redenção do malfeitor. Ela, a caricia que machuca, o riso que
debocha, a solução que desnorteia, o meu surto maior que fez que desconhecesse
a mim mesmo e a tudo que um dia acabei gostando. Ela, o tempo que oprime, a
língua que tortura, o olhar que faz corar minhas faces sem desejo algum que não
seja ele mesmo e olhe lá. Ela, o encontro que não aconteceu, a carpideira que
só sabe gargalhar, a máscara que encantou no último baile, a festa profana com
as mais estranhas litanias. Ela, que é vulgar, que é mesquinha, que não sabe de
nada, que não entende de nada, a não ser a arte de me torturar. Ela, o meu
desprezo que mata, a assinatura da minha sentença de morte, o bilhete premiado
que perdi, a minha cara de otário quando passo e todos olham, eu sou o mesmo
cara vulgar e sem ter uma moeda em meus bolsos. Ela, a mandrágora, o feitiço, a
praga, a maldição que fico invocando para meu próprio malefício. Ela, a rosa
azul, a atração mortal da lâmpada sobre os inocentes insetos que sabem que
morrem e assim mesmo voam contentes. Ela, o caminho, a saga, a trama de mil
fios que acabam fazendo um nó cego em minha mente. Ela, a manhã de carnaval,
minha eterna ressaca, a bebedeira que chegou sem aviso, a pergunta sem resposta
ou a resposta sem pergunta. Ela, o medo do brilho da faca, a sirena que atrai
para o fundo, a água invadindo os pulmões e matando o menino inocente. Ela, a
casa por decorar, a calma de dia mornos, a bagunça dos filhos, a minha
obviedade que mesmo assim surpreende. Ela, a erva daninha, a ponta quebrada, o
desenho jogado fora, a tentação de mil histórias contadas que ainda não participei.
Ela, a la ursa que cansa sem querer parar, o meu transe mais desesperado, o
tiro que errei e que foi ainda parar no alvo certo. Ela, a fumaça, o vício, a
droga que é lícita e por isso mata bem mais sem que isto seja percebido por
todos que estão em minha volta. Ela, a indecência sem pecado, o pecado sem
culpa, o filósofo gargalhando em discursos solenes sem ninguém entender mais
nada. Ela, a boba, a vendida, a puta que faz todos os milagres em solenes
peregrinações. Ela, a única, a mais diversas, a vulgaridade nunca antes
encontradas nem na gravura de todos os livros. Ela, a tosca, a mesquinha, que
me despreza e nem sabe que essa é sua pior escolha. Ela, a néscia, a boba, a
burra, a que faz armadilhas em que ela mesmo cairá. Ela, o descanso e o
cansaço, a eterna contradição, o jogo sem regras, Deus que se arrepende
enquanto o diabo tem sono. Ela, o rapto das sabinas, a violência mais suave, o
sexo bom que faz gozar até que prazer e dor venham de braços dados. Ela, a
suja, a rasgada, a malfeita, a malvestida, a ridícula que recebe meus elogios
mais sinceros e bobos. Ela, o espinho, a estria, a ruga, a mancha na pele e a
própria pele em dias mais frios em que quase chorei. Ela, a única, as várias,
tudo e nada ao mesmo tempo. Ela, a única que eu amo e sabe-se lá Deus até
quando!
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