Meus
queridos amigos:
Na verdade
as coisas são em desagrado aos nossos olhos. Vejam bem, todos vocês, em cada
dia nossas lembranças batem nossa porta como o cobrador que sabe que não temos
dinheiro algum que pague nossa dívida. São manhãs e manhãs que sucedem as
noites que pelo menos um pouco de insônia tivemos. As lembranças nos cobram que
retornemos aos nossos pontos de partida e sabemos que isso é impossível, ou
pelo menos, quase.
Mesmo
assim quero tentar amenizar esta saudade que bate por todos vocês...
Amigos
burgueses, como estão? A maioria de vocês, quando os conheci, eram os rebeldes
de meu tempo, os que diziam que iam mudar o mundo, os que zombavam e aprontavam
porque eu era o menino quieto e bem comportado. Como éramos inocentes. Deram-me
notícias sobre seus carros velozes, sobre seus eméritos títulos, suas casas
sólidas, suas vidas regradas, sua rotina asséptica, seu bom papel na sociedade,
pais ou mães de família que fazem o saudável sexo de luz apagada por amor e compromisso.
Todos vocês devem ter contas nos bancos mais usados, agenda cheia de amigos
burgueses e muito que falar das várias coisas que deram certo em suas vidas. Sim,
vocês são burgueses, tudo deu certo, aparentemente. Quando nos conhecemos,
muito tempo atrás, vocês diziam que seriam alguém na vida e foram, mas lamento
dizer-lhes, o que pretendiam ser eram pessoas diferentes de si mesmos, e ser
diferente de si mesmo, é compensador, triste e lamentável. O amor que tiveram
pode não acabar, mas é um amor sem sacrifício, um amor sem dor e sem gosto, um
amor sólido que não aumenta e nem morre, um amor estufa, um amor compromisso,
um amor quase programa. Tive amores melhores do que estes que duraram só uma
tarde. A vida que tiveram foi um livro em que todos os capítulos se repetiram,
uma pintura monocromática, uma repetição do mesmo tema, porque as vidas dos
burgueses não são parecidas, são exatamente iguais. Os burgueses escolheram
viver para si mesmos. Não são bons nem ruins, maldade e bondade dependem de
circunstâncias politicamente corretas, por isso, não tem culpa nem mérito pelo
que fizerem. E, paradoxalmente, são ruins ou bons somente para si. Lamento que
vocês tenham morrido antes da morte chegar...
E vocês,
revolucionários, como vão? Vocês eram os oprimidos como eu, os que ficavam à
parte mesmo quando devíamos estar juntos, pobres como eu, perdidos como eu,
numa vastidão tão pequena. Querem mudar o mundo? Querem viver pelos outros ou
por suas idéias? Querem a felicidade das pessoas ou aquilo que acham ser a
felicidade? Os burgueses têm idéias parecidas, mas um pouco mais feias ou menos
maquiadas se preferem. Mudar o mundo talvez seja difícil, mas a si mesmo pode
ser mais ainda. Modificar a marcha da história deve ser bem complicado, mas
evitar as contas de fim de mês é impossível. Comer, beber, dormir, trepar, são
coisas que o corpo exige e o corpo sempre tem razão. Espero que vocês consigam
alguma coisa pelo menos. Enquanto estão vivos...
E por
último, amigos loucos como eu, como vão? Não lembram de mim? Pode ser que não.
Eu era aquele menino gordinho de óculos, o pássaro engaiolado, o primeiro da
turma, o primeiro da escola, o maior motivo de risos, a vítima das brincadeiras
cruéis e de mau gosto dos bons burgueses pais de família. Aquele menino que
nunca chorava em público, chorar poderia ser causa de mais aflição. Aquele que
guardou tanta coisa e tudo que guardou deve continuar onde está. O tempo acabou
e para isso não há mais remédio. Como estão, loucos? Eu estou bem. Já percorri várias
e várias terras, combati inúmeros moinhos, esculpi nas nuvens vários Rodins e
escrevi vários versos para várias amadas. Me escondi no lado oculto da lua
junto com Lilith, cavalguei centauros em emocionantes caçadas, tomei lições
pessoais com Le Petit Prince, enfim, fiz tudo que poderia fazer e um pouco
mais. Não sei bem se poderia fazer mais um pouco ou se faço sem saber tantas
mais coisas. Só sei que somos nós, os loucos, que levamos este mundo adiante,
fazemos que ele não apenas rode, mas se mova. Fazemos que as flores tenham
cores nas manhãs que se seguem, fazemos que morte e vida sejam igualmente
vividas e importantes e que os sonhos continuem sua existência. Sei que não
costumamos falar muito sobre isso, palavras são facas de dois gumes, ladeiras
íngremes e molhadas e escorregadias, mas como é uma carta, não há outro jeito.
Loucura sã é para ser vivida.
Desculpem
se não escrevi esta carta antes, é que o tempo é eterno, mas às vezes ele
falta. O importante agora é saber que todos vocês, sejam quem forem agora,
estejam bem, cada um de sua forma. Se sentirem saudades como eu sinto daqueles
bons tempos, não se acanhem, chorem, é assim que eu faço quando não dá mais pra
agüentar, é assim que fazem todas as pessoas ou pelo menos deveriam fazer...
Sem mais
no momento, meus caros, me despeço.
Atenciosamente,
Um poeta.
Sanatório
Geral do Mundo, Em algum tempo.
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