sábado, 9 de março de 2013

Carta aos Amigos de Escola


Meus queridos amigos:
Na verdade as coisas são em desagrado aos nossos olhos. Vejam bem, todos vocês, em cada dia nossas lembranças batem nossa porta como o cobrador que sabe que não temos dinheiro algum que pague nossa dívida. São manhãs e manhãs que sucedem as noites que pelo menos um pouco de insônia tivemos. As lembranças nos cobram que retornemos aos nossos pontos de partida e sabemos que isso é impossível, ou pelo menos, quase.
Mesmo assim quero tentar amenizar esta saudade que bate por todos vocês...
Amigos burgueses, como estão? A maioria de vocês, quando os conheci, eram os rebeldes de meu tempo, os que diziam que iam mudar o mundo, os que zombavam e aprontavam porque eu era o menino quieto e bem comportado. Como éramos inocentes. Deram-me notícias sobre seus carros velozes, sobre seus eméritos títulos, suas casas sólidas, suas vidas regradas, sua rotina asséptica, seu bom papel na sociedade, pais ou mães de família que fazem o saudável sexo de luz apagada por amor e compromisso. Todos vocês devem ter contas nos bancos mais usados, agenda cheia de amigos burgueses e muito que falar das várias coisas que deram certo em suas vidas. Sim, vocês são burgueses, tudo deu certo, aparentemente. Quando nos conhecemos, muito tempo atrás, vocês diziam que seriam alguém na vida e foram, mas lamento dizer-lhes, o que pretendiam ser eram pessoas diferentes de si mesmos, e ser diferente de si mesmo, é compensador, triste e lamentável. O amor que tiveram pode não acabar, mas é um amor sem sacrifício, um amor sem dor e sem gosto, um amor sólido que não aumenta e nem morre, um amor estufa, um amor compromisso, um amor quase programa. Tive amores melhores do que estes que duraram só uma tarde. A vida que tiveram foi um livro em que todos os capítulos se repetiram, uma pintura monocromática, uma repetição do mesmo tema, porque as vidas dos burgueses não são parecidas, são exatamente iguais. Os burgueses escolheram viver para si mesmos. Não são bons nem ruins, maldade e bondade dependem de circunstâncias politicamente corretas, por isso, não tem culpa nem mérito pelo que fizerem. E, paradoxalmente, são ruins ou bons somente para si. Lamento que vocês tenham morrido antes da morte chegar...
E vocês, revolucionários, como vão? Vocês eram os oprimidos como eu, os que ficavam à parte mesmo quando devíamos estar juntos, pobres como eu, perdidos como eu, numa vastidão tão pequena. Querem mudar o mundo? Querem viver pelos outros ou por suas idéias? Querem a felicidade das pessoas ou aquilo que acham ser a felicidade? Os burgueses têm idéias parecidas, mas um pouco mais feias ou menos maquiadas se preferem. Mudar o mundo talvez seja difícil, mas a si mesmo pode ser mais ainda. Modificar a marcha da história deve ser bem complicado, mas evitar as contas de fim de mês é impossível. Comer, beber, dormir, trepar, são coisas que o corpo exige e o corpo sempre tem razão. Espero que vocês consigam alguma coisa pelo menos. Enquanto estão vivos...
E por último, amigos loucos como eu, como vão? Não lembram de mim? Pode ser que não. Eu era aquele menino gordinho de óculos, o pássaro engaiolado, o primeiro da turma, o primeiro da escola, o maior motivo de risos, a vítima das brincadeiras cruéis e de mau gosto dos bons burgueses pais de família. Aquele menino que nunca chorava em público, chorar poderia ser causa de mais aflição. Aquele que guardou tanta coisa e tudo que guardou deve continuar onde está. O tempo acabou e para isso não há mais remédio. Como estão, loucos? Eu estou bem. Já percorri várias e várias terras, combati inúmeros moinhos, esculpi nas nuvens vários Rodins e escrevi vários versos para várias amadas. Me escondi no lado oculto da lua junto com Lilith, cavalguei centauros em emocionantes caçadas, tomei lições pessoais com Le Petit Prince, enfim, fiz tudo que poderia fazer e um pouco mais. Não sei bem se poderia fazer mais um pouco ou se faço sem saber tantas mais coisas. Só sei que somos nós, os loucos, que levamos este mundo adiante, fazemos que ele não apenas rode, mas se mova. Fazemos que as flores tenham cores nas manhãs que se seguem, fazemos que morte e vida sejam igualmente vividas e importantes e que os sonhos continuem sua existência. Sei que não costumamos falar muito sobre isso, palavras são facas de dois gumes, ladeiras íngremes e molhadas e escorregadias, mas como é uma carta, não há outro jeito. Loucura sã é para ser vivida.
Desculpem se não escrevi esta carta antes, é que o tempo é eterno, mas às vezes ele falta. O importante agora é saber que todos vocês, sejam quem forem agora, estejam bem, cada um de sua forma. Se sentirem saudades como eu sinto daqueles bons tempos, não se acanhem, chorem, é assim que eu faço quando não dá mais pra agüentar, é assim que fazem todas as pessoas ou pelo menos deveriam fazer...
Sem mais no momento, meus caros, me despeço.
Atenciosamente,
                             Um poeta.
Sanatório Geral do Mundo, Em algum tempo.

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