sábado, 5 de março de 2022

Quero Morrer No Final da Novela

Quero morrer no final de uma novela. Não no final de um capítulo, mas no final de todos eles. Quando a mãe de família já ter enxugado seu rosto na ponta da blusa e o pai de família ter sorrido entre seus usuais bigodes...

Morrer quando ninguém esperar. Enquanto a filha adolescente flerta com o namorado maconheiro no aplicativo e o filho mais novo joga seu joguinho alienante...

Quando a louça estiver ainda suja sobre a mesa porque hoje, raramente, comeram juntos como há muito não faziam. Não esqueçamos que hoje temos estranhos entre si que só compartilham a mesma genética e o mesmo teto com suas imposições econômicas...

A noite terá surgido e milhares de infelizes ainda correm no centro da velha e imunda cidade mais preocupados em chegar na pequenez de suas casas, não se preocupando tanto se serão roubadas em seu trajeto. Camelôs ainda defenderão mais alguns níqueis e vendedores de comida suarão como sempre, mesmo que o tempo pareça frio...

Enquanto as putas tentam o próximo idiota para os primeiros programas da noite, os viciados agora rezam para que o efeito da droga não passe até a próxima dose. Os meninos de rua com seus rostos eternamente sujos estendem pequenas mãos, igualmente sujas, ou ainda gritam vendendo seus doces baratos... 

Mulheres de peito murcho dão seus seios para bebês de cara assustada, arrumando suas camas de papelão forradas de cobertas velhas, nessa cidade chamada desabrigo dentro de uma outra cidade bem maior que engole tudo...

Quero morrer no final da novela, bem no final da novela. Quando a atenção estará voltada para mais uma droga que invade as casas. Ora, afinal que droga? Essa aí, essa mesma, de se achar que depois da injustiça vem a justiça, que a felicidade sairá correndo de seu belo trono para enxugar a cara dos humanos com perfumados lenços de papel...

Nos últimos cinco minutos, se possível. Antes que venha o noticiário com suas expressões de drama grego, mostrando uma empatia que falta no mercado. Sem desgraça não há fantasia, sem crime não existe encenação, sem comoção (falsa, claro) não existe audiência. Antes dos mesmos comerciais chatos que nos prendem mais do que velhas correntes enferrujadas...

Não vai ser preciso passar na tela, se tiver um pouco de sorte, alguém verá que fui embora, fechei meus olhos para não mais os abrir, abrir de sono, de medo ou de cansaço. Não escorrerão mais lágrimas pelas minhas faces sujas, está consumado...

Quero morrer no final da novela e... talvez tenha até outra...


(Extraído do livro "Muitos Dias Já Passaram" de autoria de Carlinhos de Almeida).


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