Papai nasceu no dia treze de maio...
Olha, eu vou ser muito sincero, horóscopo pra mim parece um pouco com o jogo do bicho, não entendo nada, nadinha mesmo. Não sei direito a ordem de chegada dos signos e nem a sequência dos bichos do jogo. Muitos dizem que o que a astrologia dá certo, assim como muitos jogam no bicho e defendem uma grana. Sinceramente, não sei.
Só sei que o velho realmente era um genuíno taurino. Genioso feito um cão raivoso, teimoso que nem uma mula velha. Daqueles que arranjam briga por tudo e por nada também.
Eu seria hoje um verdadeiro banquete pra qualquer analista, sabe? Se deitasse no seu divã e dissesse como foi minha vida até os dezoito anos convivendo com ele, o analista que precisaria de análise depois, o trauma seria muito grande sabendo que nunca frequentei nenhum manicômio e nem me tornei nenhum serial-killer.
Amar papai não era difícil, haviam nele muitas qualidades. Tinha um coração de ouro, juro por tudo que é mais sagrado. Mas seus defeitos eram muitos, esses defeitos foram uma espécie de tormento pra mim. Não quero denegrir a memória do velho, mas que a verdade seja dita.
Numa outra ocasião eu falo de tudo que ele aprontou, hoje não.
Perdoar eu já perdoei, me lembro que naquele dia na cama do hospital, depois da visita terminada, tive que subir de novo ao seu quarto porque esqueci de deixar uma pomada que estava em falta e eu comprei. Lembro-me muito bem da cena.
Ele segurou fracamente na minha mão, as lágrimas escorreram dos olhos e ele com voz fraca:
- Me perdoa, por favor, me perdoa...
E eu:
- Perdoar o que, velho? Não tem o que perdoar, eu sempre te amei.
E ele prosseguindo e ainda chorando:
- Eu sei que fui errado, errei muito, mas foi por amor e por ciúme também.
Beijei sua testa e falei quase no seu ouvido:
- Se é isso que quer, então está bem, está perdoado...
Fui embora e acenei pela última vez. No outro dia veio a notícia, alguns minutos depois dessa cena, teve um enfarte fulminante e como já estava muito debilitado por aquele segundo AVC os médicos não puderam fazer nada.
Mas voltemos à nossa história...
Como já disse, papai nasceu no dia 13 de maio, até aí tudo bem, né? Muitas pessoas devem ter nascido neste dia, assim como em todos os outros do ano, certo?
Porém, havia um detalhe bem interessante nisso - o dia 19 de maio. Por que 19 de maio? Pois é, papai era policial reformado e usava carteiras de identidade tiradas pela corporação. Era hábito, nunca vi ele usar identidade de algum órgão civil.
Essas carteiras tinham validade, não me lembro quanto tempo valiam, mas me lembro de papai precisando fazer os preparativos para ir ao Centro da Cidade pra poder tirá-las. Um quase jejum completo no dia anterior e um purgante que o fazia ficar acordado quase a noite inteira. Ele dizia que depois que retirou a vesícula, todo cuidado pra ele era pouco, tinha passado por momentos terríveis...
E aí que entra o 19 de maio. Todas as carteiras de papai, todas mesmo, sem exceção, vinham com essa data no nascimento. No começo ele deve ter ficado surpreso, depois deve ter se acostumado a tirar uma segunda via.
Com o passar do tempo, algumas outras coisas que precisavam da data de nascimento, acontecia o mesmo. Estava lá, o 19 teimoso que era tomando o lugar do 13. Era um intruso que nós acabamos nos acostumando.
Papai entrou na casa dos sessenta. Eu sei que muita gente entra na casa dos sessenta muito melhor que muitos jovens, tanto na aparência, quanto na saúde. Mas esse não era o caso dele. Pressão sempre muito alta, abuso de álcool (cerveja e cachaça eram com ele mesmo, só detestava cigarro), comida com muito sal e muita gordura também. Além de um histórico de um AVC, meio que fraco, em que ele mesmo foi dirigindo até o nosso médico.
Um certo dia, precisou renovar a carteira de motorista. Voltou puto pra casa. Deveria ir ao oculista e fazer uns óculos...
Pra mim era coisa comum, sempre usei mesmo, desde antes de fazer a operação que não deu certo aos quatro anos pra corrigir meu estrabismo. Mas pra ele? Coitado dos óculos, com certeza ficariam quase sempre no bolso da camisa e seriam colocados se fosse parado numa blitz.
Fez e voltou lá. A carteira ficou pronta. Mas aí que está a estranha, talvez sinistra, coincidência dessa minha história: Carteira de Habilitação temporária, data de validade: 19/05/1982.
Olha lá a bendita data novamente! Pensei que estava sumida e olha lá ela aparecendo, agora como data limite, o dia em que ele não poderia dirigir mais segundo a lei.
Alguns meses foram passando e veio outro AVC. Meu velho com o lado esquerdo todo paralisado. Hospital da corporação. Preocupação e até briga de parentes, tudo com certo humor digno dos Almeidas. Dia 13 de maio, teve até bolo entrando escondido na enfermaria e parabéns pelos setenta anos. Papai morreu...
Em que dia? No dia dezenove de maio!!! Aquele número que veio tantas vezes errado nos documentos que ele tirava e agora, por último, restringindo o direito dele dirigir. Pois é, que eu saiba mortos não dirigem automóveis mesmo...
Uma coincidência ou um aviso velado? Um aviso que aconteceu por anos e anos, estava lá pra quem quisesse ver. Sei que há mortes anunciadas, a do doente terminal, do suicida, do condenado à pena capital. Mas a maioria não é.
Discutida, estudada, poetizada, temida, adorada, final sem escapatória, eis a morte com suas centenas de aparência, percorrendo os quatro cantos do mundo desde o primeiro ser humano que andou na face da terra e morreu...
Mas desse jeito? Imagino até a cena: Noite alta, chamam no portão e o velho vai atender. É o já conhecido esqueleto de capa e capuz negros. Com sua voz que só ele deve possuir:
- Eduardo, Eduardo, vim avisar que voltarei de novo pra lhe buscar na data que eu marquei na carteira de motorista, okay?
E papai voltando pra sua insônia habitual de praticamente todas as noites e só se lembrando na outra manhã como mais um sonho esquisito...
Pois é, mas que foi avisado de certa forma, foi sim...
Papai faleceu no dia dezenove de maio...
(Extraído do livro "Os Contos Que Eu Te Conto" de autoria de Carlinhos de Almeida).
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