Eu
poderia até não te amar. E recusar o beijo que me dás como o primeiro do dia. E
olhar para o canto da parede fingindo que não escuto nada. E quando falar,
reclamar dos problemas que não existem. Falar que a noite não foi boa, que a
insônia me castigou e que não fechei os olhos durante todo o tempo. Reclamar
dos mosquitos que acabaram se esquecendo de mim e da lagartixa que cantou ópera
na parede o tempo todo.
Eu
poderia até não te amar. E reclamar da dor nas costas que me consome faz anos e
que quase nunca notei. E achar que é cedo demais e já passa das dez. Que é um
absurdo o preço das joias que não compro, dos perfumes que não uso e que os
rumores de uma nova guerra no Oriente Médio vão atrapalhar meu time de vencer o
campeonato mais uma vez.
Eu
poderia até não te amar. E falar os maiores absurdos que alguém pode tentar. E
tomar aquele banho frio que nunca gostei e que o médico recomendou que não
tomasse por causa da pressão alta. Recusar o café que tanto gosto e colocar
aquele tênis que me machuca o pé e que não coloquei para o lixeiro levar porque
foi meio caro e sair batendo o pé sem dar bom-dia aos que nem sequer me
respondem.
Eu
poderia até não te amar. E não cumprir a promessa de ficar hoje que é folga
dentro de casa. E despertar o meu vagabundo de plantão. E ir tomar cerveja
naquele bar que eu não gosto. E pedir uma daquela marca que eu detesto. E falar
algumas mentiras porque isso não faz parte do meu caráter. E contar vantagens
que nunca tive.
Eu
poderia até não te amar. E voltar atrasado para o almoço. E pedir para fritar
um ovo ao invés de comer aquela carne assada que eu tanto gosto. E ir para a
sala sem ajudar a tirar a mesa. E reclamar do barulho normal das crianças para
qualquer dia de domingo. E ver com interesse aquele programa que você acha tão
chato. E ficar xingando dentro de casa pela música alta na casa do vizinho.
Eu
poderia até não te amar. E ir deitar na cama com a cara amarrada. E te chamar
mil vezes só para atrapalhar a rotina. E ficar mexendo no celular sem fazer
mais nada. E não responder o papo que você puxa sempre.
Eu
poderia até não te amar. Não dar atenção para as notícias que você me conta. E
dizer que um domingo tão bom e sossegado já foi tarde. E reclamar do emprego em
que vai tudo bem. E falar em adiar aquele passeio nas férias dos meninos. E
insinuar que não gosto dos meus sogros que me tratam feito filho.
Eu
poderia até não te amar. E fingir que durmo para não dar aquela trepada. E
virar para um canto e nem dizer mais nada. E achar que você ronca mais que eu.
E que não deveria usar tanto perfume.
Eu
poderia até não te amar. E lamentar não ter feito outra coisa. E lembrar das
coisas que não fiz durante a vida. E amaldiçoar porque sou carioca e suburbano.
E que queria agora estar dirigindo um carrão importado. E que queria ser famoso
como artista de tevê.
Eu
poderia até não te amar. De colocar a culpa em você porque já passou dos
trinta. Como se alguém pudesse controlar o tempo. E lamentar que não me casei
com aquela modelo que foi capa de revista. E que coisas normais não têm graça
alguma.
Eu
poderia até não te amar. E levantar fazendo barulho para beber água sem ter
sede. E ficar andando feito zumbi pela casa. E que não ter quarto de hóspedes é
irritante. E que poderia colocar o pé no mundo. E achar que seria o salvador da
pátria. E lembrar da porrada que dei no filho-da-puta que me chamou um dia de
burguês.
Eu
poderia até não te amar. E te colocar a culpa pelo sono que não vem. E sentar
na frente do computador e ficar buscando assuntos aleatórios na internet como
se isso tivesse alguma importância. E achar que devemos ter medo da morte.
Eu
poderia até não te amar. Pelos muitos problemas que você nunca me trouxe. Deve
ser porque eu queria fazer as coisas que nunca fiz. E na verdade, se fizesse,
perderia toda a graça. Porque a vida é assim mesmo. Deu vontade de sair para a
rua nessa hora. Só que a preguiça veio agora.
Eu
poderia até não te amar. Porque vivo procurando em você algum defeito, mas
defeitos todo mundo tem e isso é verdade. É que eu sempre sou assim, reclamo de
tudo. E não entendo porque Deus me fez assim.
Eu
poderia até não te amar. Rasgar os versos que insisto em escrever com rimas tão
baratas. E esquecer aquele plano de ser chamado poeta um dia. E ser tão
significativo como um papel que está em branco. Eu queria ser apenas o herói do dia.
Eu
poderia até não te amar. Exatamente por não ter motivo nenhum para isso. Mas
como te amo...
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