Nasci numa madrugada dessas frias que correm por aí, numa noite escura de um agosto de algumas pragas e também tristeza. Minha mãe sentia dores desde o dia anterior, como tudo no mundo assim o é - somente dor.
Não me lembro do meu primeiro choro (um de muitos e muitos), mas deve ser um refresco que a turma lá de cima nos concede. Sei hoje é filmado, fotografado, documentado, mas naquela época não havia tanta crueldade disfarçada com meigas e belas tintas.
Eu fui um produto da fuga, os socos e os pontapés doíam e o medo era grande. As coisas tinham a complicação de sua época e o ciúme era justificado pela violência. E, apesar das expectativas, no fundo serem até boas, a morte pode vir quando é chamada.
Pegue a bicicleta, meu tio, é urgente que nasça mais um sofredor para o mundo, a esperança corre nas veias até dos mais desesperançados e sempre rimos, mesmo quando não há graça nenhuma na graça que contamos.
O cearense calado chora de emoção, agradece ao seu Deus cristão que correu tudo bem e a senhora bonita festeja do seu modo etílico. Se se pudesse, o cabaré da Maria Carioca estaria em festa, mas isto é uma outra história, enterrada ou não.
Tempo de frio, sim, muito frio, meu senhor, de gelar as veias e paralisar o coração. Tempo de cachorro louco e outras lendas que correm nas bocas e no imaginário dos homens. Muito tempo, tempo de bicas nas ruas e algum decoro, mas só algum. Tempo de muito preto-e-branco e algum colorido, das notícias do rádio e do sonho remoto de uma televisão.
Sepetiba é quase logo ali, vamos lá, a audácia supera algumas coisas, esconde algumas outras. Sepetiba é logo lá, é o terreno místico onde vendedores de milho cozido são filósofos e os caras dos carrinhos de refrigerante fazem profecias. As pranchas de madeiras são nossas naus e os aviões de isopor sangram os céus. Sepetiba é quase cá, sua água e sua lama, seus sonhos que morrerão como todos.
Tempo bendito sim, tempo maldito também, de surpresa e de vinho pra comemorar, tempo de susto, tempo de futuras tristezas, de saudades infinitas, de um destino que faz brincadeiras de mau-gosto, tudo fica, mas tudo passa.
A garrafa do vinho quase barato escorregando da mão do homem rude, o líquido esparramado no chão do quarto, os cacos virando estrelas de não-sei-onde.
- É um menino, seu Eduardo...
- ?
- Nasceu, seu filho é um menino, seu Eduardo.
Câmera lenta na cena.
- Dona Odete, meu filho nasceu perfeito?
...
(Extraído do livro "Teoria do Medo" de autoria de Carlinhos de Almeida).
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