sexta-feira, 26 de abril de 2019

Eu Não Morri

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Eu não morri, certamente, não morri. Eu posso até essa centena de cacos de vidro espalhados agora por esse chão sujo. Sim, eu era o vidro que refletia o sol das manhãs em um tempo muito antigo, tão antigo que não posso lhe dizer. Um tempo em que as coisas eram tão diferentes e, apesar de ser um menino mau, a inocência ainda teimava em permanecer dentro de mim...
Eu não morri, insolitamente, não morri. A bala passou raspando, a febre quase me levou pro outro lado, mas as coisas que conspiraram contra mim também foram embora. A lâmina perdeu o corte antes de passar em minha garganta e o rio de minhas veias ainda continua intacto com sua corrente contínua e nervosa. Tudo tem sua vez e acredito que ainda verei muitos dias tristes...
Eu não morri, admiravelmente, não morri. Fechei os olhos na escuridão do meu quarto, pedi que um sono eterno viesse logo, que fosse um sono pesado como aqueles que não se lembra de mais nada. Mas eis que uma claridade invadiu a janela e antes que eu pudesse reclamar de algum frio, meu rosto já tinha esquentado...
Eu não morri, lamentavelmente, não morri. Como morrem todas as flores, como secam todas as folhas, como murcham todas as ervas e os pássaros sob o julgo dos passarinheiros. E continuei livre num mundo sem liberdade, acreditando em todas as mentiras da esperança, no engano de todos os homens maus que afligem os seres e as coisas...
Eu não morri, indiscretamente, não morri. Mesmo quando tentei não rir, aí que eu ri mais alto; quando evitar as minhas lágrimas de ternura, aí que elas doeram mais ainda; quando tentei fugir, os meus pés ficaram parados esperando toda a fatalidade dos meus erros que traçaram meu pobre destino. Mesmo sendo um fraco, ainda luto. E mesmo sendo um tolo, ainda penso...
Eu não morri, incrivelmente, não morri. Deve ter sido pela força do hábito, morremos sempre, morremos muito e, por isso, acabamos nos acostumando com tal coisa. Desde o tempo que os anjos caíram do Paraíso, do tempo em que o primeiro fruto foi mordido, o primeiro pecado executado e todas as coisas acabaram dando no que deu...
Eu não morri, tristemente, não morri. Depois que aconteceu o primeiro drama, a primeira trama arquitetada para nos ferir, para que perdêssemos o rumo e vagássemos por estas vielas escuras procurando algum sentido para estarmos aqui, porque estamos aqui e de onde viemos, perguntas não respondidas até o dia de hoje...
Eu não morri, certamente não morri. Em dias de céu, dias de chuva ou de céus nublados, ainda continuo por aí... 

(Extraído do livro "Muitos Dias Já Passaram" de autoria de Carlinhos de Almeida). 

Um comentário:

  1. Maravilhoso, tão real e atual.
    A gente morre aos pouquinhos, um pouco a cada dia, ao final a gente nem se importa mais em morrer, as coisas bonitas que imaginávamos no passado se tornaram sombrias e sem esperança.

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Carliniana XLIV (Tranças Imperceptíveis)

Quero deixar de trair a mim mesmo dentro desse calabouço de falsas ilusões Nada é mais absurdo do que se enganar com falsas e amenas soluçõe...