quarta-feira, 10 de abril de 2019

Da Natureza da Cegueira

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Nada pude ver. Meus olhos estavam embaçados demais com a suja cortina de lágrimas que amortalhava o meu dia. Os dias são assim. Uma grande e insana mistura de antagonismos que nos forçam à entrar nessa dança sem sentido...
Nada pude ver. O meu coração fugia em busca de outras terras mais distantes. Onde ao menos um pouco de paz pudesse existir. O medo acabou descobrindo nosso endereço. E suas visitas são mais que frequentes. Ele tem muitas coisas para me mostrar...
Nada pude ver. Eu ainda pensava com ingenuidade que as coisas boas viriam se as chamasse. Acreditava na promessa dos homens. E acabavam me esquecendo da maldade deles. Assim como às vezes esqueço até do demônio que persiste em mim...
Nada pude ver. A paixão furou minhas pupilas. E eu não pude ver a sordidez que muitos amores guardam em si. No fundo de um poço encontramos a falsa ideia que tudo há de dar certo...
Nada pude ver. E mesmo assim me aventurei por todas as ruas querendo encontrá-la. E nem mesmo a minha bengala me livrava dos tropeções e das pedras que feriam meus pés. Nem o sol e nem a lua podiam me ajudar...
Nada pude ver. Não reparei de quantos riam de mim. De quantos olhavam com comum desprezo. Ou quantos apenas mostravam uma piedade falsa tipo trabalho de casa. Não adianta negarmos. Tudo só nos sensibiliza se nos sentimos afligidos...
Nada pude ver. Nem o sorriso que alguém tentou me dar. Nem a criança que aproveitava sabiamente o tempo. Nem a flor sem nome que mostrava sua cor. Nem sempre o que queremos é o que precisamos. E que nos faz pelo menos um pouco contentes...
Nada pude ver. Só o dinheiro que seria apenas um grande tentador. A fama que seria a maior das decepções. E o poder que seria como o cão raivoso que compro para que ele possa me morder...
Nada pude ver. Nem a ternura. Nem a compaixão. Nem o verdadeiro amor por todos os seres e todas as coisas. Esqueci das velhas lições. E lembrei dos velhos erros para poder repeti-los cada vez mais...
Nada pude ver. E fui direto ao abismo. Como quem anda numa fila sem perceber o valor do tempo. Esquecendo que ambas - vida e morte - são importantes. Cada uma ao seu modo. Continuando sem resposta para as perguntas mais básicas...
Nada pude ver. E continuei andando cego. Cego entre os homens. Todos cegos...

(Extraído do livro "Eu Não Disse Que Era Poeira?" de autoria de Carlinhos de Almeida).

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