terça-feira, 14 de julho de 2020

Nem Eu Mesmo Sei Como Cheguei Por Aqui

Menino com a rosa na mão - Home | Facebook
Nem eu mesmo sei como cheguei por aqui...
Só sei que foi numa madrugada de tempestade, cheia de ventos frios como só podem ser os de agosto. Uma madrugada de cara bem feia, dessas parecendo menino antes de chorar. Só sei que a minha mãe sentiu dores quase um dia inteiro antes (ela que me contava isso), fugindo do medo e das loucuras de meu infeliz pai.
Nem eu mesmo sei como cheguei por aqui...
Me lembro do menino franzino que o clarão do lampião entortou os olhos não mais azuis e que nem o médico conseguiu endireitar. O menino que vivia sob o medo constante, na pequena casa isolada do resto do mundo (que também deveria ser cruel), que fazia mágicas no seu quintal e desenhava sóis risonhos para que ele viesse espantando o tempo feio.
Nem eu mesmo sei como cheguei por aqui...
A casa pequena, o poço que dava medo, o canto do bacurau nas noites de eternidade. Os gibis velhos que minha mãe lia repetindo histórias memoráveis enquanto em nem sabia o que bem sonhar porque nada conhecia direito. O mundo era apenas o caminho entre que o carro preto antigo fazia até chegar ao mar.
Nem eu mesmo sei como cheguei por aqui...
As roupas pobres que eu nem podia escolher, os infinitos corredores de alegria e medo (elas andavam sempre de mãos dadas). Os inimigos amigos que partiram de um em um, assim são os ventos da vida. O amor que se recusou a ter alguma pena de mim. Eis o dedo da maldade apontada para mim - é ele!
Nem eu mesmo sei como cheguei por aqui.
Os muitos caminhos que tropecei e as feridas que nunca fecharam e não fecharão mesmo com toda a eternidade possível. As loucuras feitas do mais frágil dos papéis. Eram muitas as mentiras que eu engoli como quem engole o mortal veneno, mas acaba não morrendo. Era um silêncio de palavras gritantes onde só o paradoxo era o permitido.
Nem eu mesmo sei como cheguei por aqui...
Valas negras, caminhos tortos, quase solidão, psicopatias urgentes para a minha alma de rastreador solitário. Um belo conjunto de nuvens no céu. O paciente ainda vivo está. Não tem previsão de melhoras, mas isso seria pedir demais.
Nem eu mesmo sei como cheguei por aqui.
Talvez um barco, talvez um trem, talvez asas emprestadas de algum decaído, nunca se sabe o que será. Talvez pior, talvez melhor, lembrado ou esquecido, será o mesmo. O arrependimento pelo que deixei de fazer falará mais alto. Este sim, será um grito surdo que ecoará até não sei quando.
Nem eu mesmo sei como cheguei por aqui...
Se ficarei ou não, isso é uma outra história...

(Extraído do livro "Muitos Dias Já Passaram" de autoria de Carlinhos de Almeida).

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