domingo, 14 de outubro de 2018

O Abutre Na Laje

Resultado de imagem para parte interna de uma laje
Vejo um abutre na laje, além de outras e outras figuras difusas dum dia tedioso de nada fazer. Que horas não sei. Dou bom dia pra ele na falta de alguém pra falar.
Como você está? Passou a noite bem? A sua resposta deve ser sim, porquanto ainda sorri com o mesmo rosto debochado de sempre. Suas asas estão abertas, suas garras preparadas para o bote certeiro e malvado, sua coroa aponta pro alto no mesmo desafio de dias e dias.
Como estão vocês outras figuras? Como são impressionantes os traços gravados nos tijolos, como se um fosse um inferno particular ao meu dispor. Outro talvez tivesse medo de seus rostos deformados, dos seus múltiplos olhos e diversas bocas, mas eu não. Preciso conter o medo, pois até este acaba faltando em mim.
Todos são demônios? Fica difícil responder tal coisa.... Há demônios de várias e variadas espécies no mundo lá fora, só depende do ponto de vista de quem olha. Muitos demônios mesmo, alguns são até bons e choram quando matam os sonhos de suas vítimas.
Alguns são monstros? Há mais monstros no mundo lá de fora, onde coisas tão simples podem fazer muito. E a tristeza fala em altos brados sem, no entanto, incomodar ninguém.
As pessoas estão insensíveis? Ou sempre foram e só agora noto? Talvez sim, talvez não, o insensível e o imprevisível muitas vezes acabam fazendo uma célere parceria e isso acaba obtendo muito sucesso...
Conto os tijolos às vezes. Não sempre. É muito cansativo até não estar cansado e do meu leito de convalescente de doença alguma suspiro muitas vezes sem perceber.
Que dia é hoje? Pelos meus cálculos deve ser algum dos sete, algum dos meses, algum dos anos, mas eu nunca fui muito bom de cálculo, só sei que está claro, apesar de gostar de ficar com a luz acesa. Vá que a morte acabe vindo e faltam velas por aqui...
Aliás, há coisas que faltam tanto que acabam não fazendo mais falta. Coisas pequenas e grandes, mas como medi-las, tudo tem o mesmo tamanho se não faltar visão?
Já pensei em tanta coisa, menos em me matar. Me matar pra que? Vá que eu falhe, e seja apenas uma troca de condição, não gosto mesmo de decepções, apesar de ter tido muitas nesses últimos tempos.
Mas voltemos a você, meu abutre querido. Obrigado, muito obrigado mesmo pelo seu sorriso, não sei se é pra mim, mas façamos de conta que é. As pessoas andam andando sérias demais, nada não é mais como era antes.
Antes as coisas eram diferentes, nem melhores, nem piores, apenas diferentes. Pouco se tinha, mas, por isso mesmo, davam um valor bem diferente pra tudo. Nisso consistia um encanto bem melhor. 
Lembro-me de muitas manhãs, não me leve à mal, em que mesmo com preguiça, conseguia acordar menos triste do que hoje. Não era porque a tristeza não existia, mas é porque estávamos acostumados ao não lhe dar a trela que damos hoje.
Haviam menos moedas, por isso valiam mais. Era ilusão? Não sei, só sei que ilusões são geralmente mais necessárias que as certezas. As certezas acabam se dissipando como água que evapora em dias menos quentes. 
Engraçado, meu caro senhor abutre, tudo passará, e mesmo assim, quando este teto cair ou quando colocarem um emboço em cima de você, a sua morte já está morta, o seu fim se extinguiu, mesmo que não esteja mais aqui, os meus olhos já te olharam mais que um dia, já te dei bom dia diversas vezes, te observei curioso quando se escondia de mim pela posição do sol. Não me respondeste? Talvez porque tua timidez te impossibilitasse disso. Apenas um detalhe. Foste companhia de muitos dias pra esse velho solitário que só podia olhar para o teto e se conformar com a tristeza e o abandono dos dias, o único que eu podia falar, já que demônios nunca falam, só esperam sua hora.
Um bom dia, caro senhor abutre desenhado ao acaso no teto do meu quarto de solitário...

(Extraído do livro "Os Contos Que Eu Te Conto" de autoria de Carlinhos de Almeida)

Um comentário:

  1. Esse conto é muito profundo, muito bonito, de uma beleza triste e melancólica, porque mostra a solidão de um fim de vida. O abutre parece só estar esperando o momento de se alimentar, e os demônios, o momento de levar a alma dessa pessoa. Muito profundo, muito triste, muito melancólico e cheio de sentimentos.

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Carliniana XLV (Indissolúvel)

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