Sabe, Maria, eu sempre tive medo de grandes alturas. Subir numa cadeira já me traz a aflição da iminência de um tombo, de me machucar todo ou, sei lá, que aconteça alguma fatalidade...
E quando eu passo num viaduto ou atravesso uma passarela? As pernas doem mais do que de costume, ficam bem mais pesadas e eu sinto tipo uma vertigem daquelas bem pequenas, que me afligem não por achar que naquela hora eu caio, não é isso, mas que fazem perder a noção de tempo e achar que aquilo ali é que é a tal de eternidade.
Não sei se isso já nasceu comigo, se foi por causa do tombo no cinema. Eu contei? Eu não me lembro qual ano, qual mês, qual dia, essas coisas já estão todas empilhadas na minha memória na parte do esquecimento, mas qual o dia da semana, isso eu tenho certeza que sei. Era um domingo, eu tenho certeza que era. O velho só ia ao cinema no domingo. Coisa de gente velha? Gente velha tem uma porção de manias, mas isso agora não vem ao caso. Só sei que era domingo, tenho a impressão que não era um domingo daqueles quentes.
Pois bem, a gente sempre ia domingo no cinema que havia lá em Santa Cruz, lá no alto embaixo da igreja matriz. Era um cinema bem diferente, enorme, no subsolo da igreja. Meu pai ia primeiro na bilheteria, comprava os ingressos pra nós três e depois ia na lojinha que tinha do lado de fora, comprar as balas Juquinha e os bombons Prestígio era quase um ritual. Nada de pipoca e outras manias dos americanos nos cinemas de lá, tudo era muito mais distante do que nos dias de hoje.
Mas prossigamos. Não sei porque cargas d'água a gente chegou um pouco atrasado e o filme estava começando. O bobo aqui cheio de pressa saí correndo na frente. Não deu outra, no primeiro degrau escorreguei e caí pra trás e, ai já viu né? Os primeiros dez degraus eram uma reta, depois tipo um descanso e virando pra esquerda o resto da escada. Meu pai quase caiu correndo atrás pra me socorrer, tinha perdido a fala. Depois de um álcool passado no lombo com quem vinha chegando vendo, fomos assistir o filme, mas doía muito.
Pode ser isso, não acha? E eu tenho muito medo de altura, muita mesmo. Sinto um baque no meu coração quando tenho que olhar lugares altos, subir escadas, elevador eu tenho pavor, escada rolante pra mim é o inferno.
Mesmo assim, o ser humano é engraçado, sabe Maria? Duas coisas eu não tenho medo e até gosto. Andar de roda-gigante. Eu adoro! Todo final de ano vinha um parque pra aqui onde eu moro, algumas vezes numa praia, outras vezes em outra. Meu pai sempre levava à noite pra andar, o brinquedo que eu mais gostava (também gostava daqueles carrinhos que batem uns nos outros e tentar ganhar um Mirabel com os tiros de rolha, mas só ganhei um uma vez), gostava muito de estar lá em cima e ver o mar à noite bem lá na frente, lá longe e um monte de luzes refletidas nele. Era lindo...
A outra coisa é viajar de avião. Quando surgiu a oportunidade de ir em Portugal, no começo eu gelei. Uma distância tão grande, num espaço de tempo enorme, e, ainda por cima, sozinho. Acabei gostando, mesmo com aquelas duas turbulências que aconteceram, uma na ida e outra na volta. Talvez a única coisa meio ruim no avião é ter que ficar um tempão sem poder fumar. Só que vale a pena, isso vale.
Mas não era bem isso que eu queria te falar, minha cara. É sobre uns sonhos estranhos que venho tendo nestes últimos tempos. São sonhos estranhos, meio esquisitos mesmo. Não que a maioria deles não o seja, são mesmo. Mas esses...
Um deles é que eu consigo voar, sem asas, sem ser passarinho, simplesmente voo. Só que neles, eu acabo voando meio baixo, quase que caindo, mas mesmo assim não tenho medo na hora, dá pra sentir isso. Como eu voo? Uma coisa muito estranha, sabe? Umas vezes num automóvel voador, feito filme mesmo; em outras, numa espécie de cadeira mágica; já voei até em casinha de brinquedo, dessas de criança, feitas de madeira.
Das outras vezes, é mais esquisito ainda. Como lhe expliquei tenho pavor de escadas. Pois é, nesses sonhos que andam acontecendo ultimamente, o medo não existe. Aparece sempre alguma escada no sonho e eu (veja só, que loucura) adoro sair escorregando nelas. Elas viram um escorrega e desliso com se não acontecesse nada, sem medo e sem dor.
Pois é, Maria, nem imagino o que isso significa, pode ser alguma coisa ou pode ser nada, nunca se sabe, né? É que eu acabo me lembrando de outros voos, de outros medos, o tempo parece tão longo, mas é puro engano. Todas as coisas correm, os inícios às vezes tem pressa e as vezes não, mas os finais são afobados e ariscos. Os finais são imprevisíveis, apesar de parecerem assim tão óbvios.
Outros voos, outros voos, alguns que a gente imagina, outros não, mas quem sabe?...
(Extraído do livro "Os Contos Que Eu Te conto" de Carlinhos de Almeida).