sexta-feira, 27 de junho de 2025

O Funeral do Rico Burguês

Não sou de guardar datas. Muito mal guardo o ano em que as coisas aconteceram (não todas as vezes), de vez em quando o mês (quando foi algo muito significativo) e o dia da semana, pode esquecer...

Por que acontece isso? Em parte pode ser que a mente já esteja cheia, isso acontece com todo ser humano. Quando nascemos nossa primeira impressão é aquela luz forte, hostil e desagradável da sala de parto, depois vem a explosão do nosso choro e, eventualmente, o choro de mais alguém que acabou de nascer. Com o passar do tempo, dias, semanas, meses, anos, surgem um monte de coisas, necessárias ou não, que acabam enchendo nossa mente, aprendizados e fatos, alguns se apagam, outros nãos. Para isso, colabora a nossa idade, e eu, não sou mais do que um velho.

Por outro lado, deve ser consequência do tempo em que vivemos. Mesmo que ele seja semelhante a todos os outros que a civilização humana já teve até hoje, o nosso é bem mais exagerado. Sim, estamos na época do exagero. Exagero de mitos, de mentiras forjadas de cara bonita, de necessidades dispensáveis, da apatia necessária para que o poder domine, de uma tecnologia descartável. O dinheiro já é nosso deus há muito tempo e não quer descer dos altares. Como todo cidadão que se preza, ou não, acabo esquecendo, o que faz que eu seja um cidadão "normal".

Mas vamos ao que interessa. A notícia chegou pelo WhatsApp, e eu, por acaso, acabei lendo. Sabe aqueles grupos que você tem apenas por ter? Grupos que você raramente lê o que postam e que logo que pode, apaga aquele monte de mensagens para não ficar pesando na memória do celular? Mas acabei lendo...

Aliás, um grupo igual à tantos outros. Um grupo de ex-alunos da minha escola. Acabei entrando de gaiato naquela merda e acabei, como sou ainda muito tímido, não podendo sair.

Pois é, o cara morreu. Deveria ser, quando muito, uns meses mais velho do que eu. Saúde? Possivelmente tinha mais do que eu, já que foi militar uma boa parte da vida. Mas como dizia meu velho pai: "Tinha é pior do que lepra..."

Morreu do coração, um infarto daqueles que nem o socorro conseguiu evitar. Segundo falaram no grupo, estava assistindo o jornal na televisão na sala e caiu duro de cara no tapete. Morreu como viveu depois dos tempos de escola. Morreu burguês, no lar, junto com os filhos e os netos, diferente do grande filho-da-puta que foi no passado.

Morreu moralista (falso?), conservador, religioso, não mais o antigo comedor das putinhas daquela época, sim, naquela época já havia muitas, só que mais escondidas do que hoje em dia. As mesmas de antigamente, hoje são as adoráveis "mães-de-família"... Ah! Ia me esquecendo, de alguns "viadinhos" da época. Se aquele banheiro do pátio da escola falasse...

Vou nesse enterro...

Não gosto muito de ir nesse cemitério. Não pelo cemitério em si, é um cemitério normal, tem até uns túmulos bem bonitos e eu não tenho aversão à eles, até gosto. Mas além de não gostar de ir em funerais, meus pais foram sepultados aí, os ossos do velho estão ainda aí, os de mamãe tiveram que ir para outro por falta de vaga na época. Fora isso, uns dois tios meus ficaram aí e também alguns conhecidos.

No enterro compareceu bastante gente. Parentes, amigos e algumas pessoas não muito conhecidas. Não sei porquê, mas deu pra notar isso. Os parentes, a maioria por obrigação, duvido que ele, em vida, prestasse alguma coisa. Fica difícil acreditar que o tempo lhe ensinou alguma coisa. Alguém disse com muita razão uma vez: "Os canalhas também envelhecem"...

Amigos? Bem, ele deve ter tido duas categorias de amigos: a primeira, a dos amigos por conveniência. Aquela em que estão incluídos os que conviveram no mesmo ambiente de trabalho, os que conviveram na mesma rua ou no mesmo prédio, os que de uma forma ou de outra acabaram convivendo com ele, mesmo sendo uma pessoa desagradável. Inteligente? Talvez... Educado? Pode ser... Mas uma pessoa que sempre vinha com aquele sorriso de falsa superioridade como existem muitos por aí. "Minha religião é a única certa". "Meu Deus é o único", "Eu sou o melhor de todos". "Tenho sempre razão em tudo". "Se erro, devo ser desculpado". E por aí vai... O mundo está cheio desses merdas.

Já na segunda categoria, estão os "verdadeiros" amigos. Aqueles que não valiam nada, iguais à ele. Os que achavam que se ofendessem, isso não tinha importância; os que se magoavam, magoaram sem querer e que, de qualquer jeito, deveriam, ser perdoados; os que achavam que estavam sempre certos; que consideravam que o mundo é dos mais espertos e que os mais capazes são os que têm mais. Um bando de bostas, uns classe-média, que não aprenderam a lição dos mais pobres e nem o poder sujo dos mais ricos. Se houvesse um "Clube dos Babacas" ficaria difícil saber quem presidiria, mas todos, com certeza, seriam sócios efetivos.

A viúva estava lá. Reconheci de longe. Não pela foto, nunca que ele postava ela nas redes sociais. Mas pelo comportamento dela e dos outros presentes ao funeral. Chorava, chorava. Estava chorando por que, sua vaca? Chorando porque agora ia ter que acabar a filha caçula que nasceu com síndrome de Down. Pois é, a única coisa boa que eu soube que este canalha fez em toda sua vida foi esta - teve uma filha com esse problema e preferiu separar da mulher e criar os filhos sozinhos. Até o Diabo pode ter alguma qualidade, né?

O resto dos parentes, nem precisa comentar. 

Nem o caixão que, com certeza, foi daqueles de primeira, nem as coroas de flores, mais de uma. Muito menos sobre aquelas orações que fazem para consolar os parentes, já que na religião do falecido não existe intercessão alguma pela alma dos mortos. Morreu, lascou.

Alguns dos que estavam no enterro, eu vi antes, nas barraquinhas que ficam do outro lado da rua tomando uma cerveja, o que é mais do que uma tradição nos enterros, para aqueles bebem. Vão "beber o morto".

Mas eis que aí acontece o insólito. É comum termos duas expressões para os cadáveres: uns parecem estar sérios, como se não gostassem de forma alguma desta partida sem volta que todos passam, Outros, possuem a expressão mais serena, o que não deixa de ser mórbido da mesma forma, parecem que estão dormindo.

O cara estava sorrindo! Isso, sabe aquele sorriso que parece que vai se transformar num riso? Tipo quem está escutando o meio de uma piada, prevendo que rirá em alguns segundos. 

Pois é, vai dar aquela sua risada asquerosa quando me fazia bullying, há décadas atrás, nesta merda de escola que hoje está em ruínas. Dizem que certos traumas são como algumas cicatrizes, resultado de feridas que fecharam, mas que nunca apagaram. Era hora do recreio, eu acabei ficando mesmo no laboratório em que a gente estudava. Veio você e aquela meia dúzia de filhos da puta, me cercaram. Começaram a falar gracinhas em graça. Até que um de vocês (não falo o nome, mas me lembro quem era, já morreu também o desgraçado) sentou no meu colo e começou à rebolar. Como resisti sem esboçar nenhuma reação, acabaram indo embora.

Cambada de desgraçados! Filhos-da-puta! Éramos de uma geração sem a porra da tecnologia que temos hoje (que prejudica, mas ajuda também), uma geração insossa, em que os milicos é que mandavam nesta merda, Uma geração em que respeito e medo eram sinônimos, em que pais eram um misto de tiranos e carrascos. Onde agredir e humilhar quem não podia se defender era o mesmo que ensinar. Não éramos filhos de família, éramos filhos do medo. Cada época tem suas mazelas, isso tem, mas nem por isso tenhamos só saudade daquela sem respeitar a que vivemos.

Mas voltemos ao que interessa. O tanatopraxista está de parabéns! Não porque fez um bom trabalho, segundo as normas, com certeza não fez, deixou um cadáver sorrindo, quase rindo, algo meio esdruxulo, mas porque, sem saber, acabou contribuindo para minha satisfação. 

Estar satisfeito com a morte dele? Não, não estou. Apesar de meus muitos erros, este eu não carrego, não me lembro de ter sentido raiva de alguém até este ponto. 

Fora isso, se este canalha que agora está ali, de papo pro ar, no meio das flores, cercado de um bando de babacas, como uma trupe de atores de quinta categoria, merecia ou não o que aconteceu, não sou eu que vou julgar. Acho que isso de cada um tem sua hora, na verdade, é apenas mais uma frase feita, sem muito sentido. A verdade é bem outra - a última coisa que se quer na vida é a morte.

Fora o fato de ter assumido e criado a filha com a síndrome, é como eu digo, deveria ter tido alguma qualidade, mas eu mesmo não enxerguei porra nenhuma.

Abençoado tanatopraxista, muito obrigado, se foi você o responsável por isto...

E agora? Continue aí sorrindo, seu filho-da-puta! Não sorrirá pela eternidade, com certeza que não, o sorriso dos esqueletos não é bem um sorriso, é apenas um deboche que a natureza fez. As caveiras parecem rir o riso que nunca deram porque a natureza é implacável. 

Esse cheiro enjoativo de flores foi feito para disfarçar o seu fedor fora da geladeira. Ninguém, em seu juízo normal, aprecia o aroma dos mortos, aliás, o aroma não, o fedor dos mortos.

Isso, continue aí mesmo, em breve irá para a sua gaveta, ficará lá, deitadinho, no escuro, no absoluto silêncio, não importa algum eventual barulho que se faça lá fora. Não adianta o barulho da avenida tumultuada lá de baixo, nem ao menos o barulho dos moleques soltando pipa entre os túmulos quando estiverem no tempo desse tipo de brincadeira. 

Canto de pássaros? Isso agora não importa mais. Vai haver mais guerra no mundo? Isso não lhe interessa. Se os candidatos que você apoiou, venceram mais uma eleição ou foram presos por conta de alguma merda, não tem mais valor algum.

O sino finalmente tocou. 

Não sei porque esse último "passeio" é lento. Se foi um alívio pra muita gente, deveria ser mais rápido. Se não foi, também, de igual forma, também deveria. Não há nem fundo musical, as marchas fúnebres só devem existir em filmes, novelas ou desenhos animados...

Nem algumas últimas palavras foram ditas, não sei se porque alguém que não quis aparecer ou, ainda, por outro motivo. Talvez deve ter sido porque o morto era odiado por mais alguém do que eu.

Será que tem mais alguém que veio aqui? Talvez algum aluno daquele tempo que ele também fez uma brincadeira sem-graça e ofensiva. Ou algum cara que descobriu que foi corneado pela mulher com esse mau-caráter. Ou ainda alguém que engoliu o deboche dele, tentando converter alguém pra sua religião. Nunca se sabe.

Senti um certo alívio, minha tarefa estava cumprida..

Desço os degraus da entrada do cemitério. Alguém se mancou ao me ver com a minha bengala e gentilmente me ajudou. Desde o meu miserável AVC que sou menos amigo ainda dos degraus. O uber já chegou. 

Como sempre puxo papo com o motorista. Não posso perder a minha pose de velho simpático e meio falador. O sol até que está bonito e não muito quente por conta da estação. Reparo em algumas construções relativamente novas desde a última vez que vim aqui, já fazia um tempinho.

O carro para no bar aqui perto de casa, não pedi que ele me deixasse lá, depois não é muito difícil ir à pé. Peço uma mineira. Bebo de um gole só, depois peço uma cerveja pequena. Pronto. Já bebi o morto.

Vou pra casa. Descanse em paz lá no Inferno, seu filho-da-puta...

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