- Toma cuidado, muito cuidado. Nem sempre me farás perguntas e quando eu responder, minhas respostas te trarão satisfação alguma...
- Como assim?
- Mau começo este teu, não questione meus métodos, fui feito para permanecer em silêncio, sendo este malvado ou não. Nada depende de mim, não sou eu que faço tua tristeza ou tua alegria. Notaste que fico no canto em que me deixaram e que o tempo também há de acabar comigo aos poucos?
-...
- Eu aos poucos apresento manchas que acabarão tirando minha nitidez, assim como todos os seres acabam trazendo suas rugas tanto de velhice quanto do gasto, sendo este necessário ou desnecessário...
- Mas porque isso acontece?
- Bela pergunta! Se não fosse tão óbvia e por esse motivo, tão idiota... Por acaso não observaste o começo de todas as coisas? Tudo começa a acontecer da melhor forma possível e depois... Ah, depois, meu pobre amigo, transforma-se no que chamamos de final... Olhe em torno, talvez entenda melhor...
- Me dê um exemplo, por favor...
- Um exemplo? Poderia te dar dezenas, centenas, milhares deles, milhões até, já que tudo nesta roda é parecido, mas nada é igual. Imagine só, um breve passeio neste seu bairro... Imaginou?
- Sim...
- Pois bem, imagine que está passando na porta do boteco da esquina e por um motivo que não importa, ele está agora lotado. Esqueça para isso, qual o dia da semana ou o horário, pouco importa para o que eu quero dar como exemplo...
- Está lotado...
- Imagina agora que estão todos bebendo...
- Estão todos bebendo...
- A maioria, senão todos, estão bebendo algo de algum teor alcoólico.
- Alguns, ficarão embriagados, outros um pouco tontos...
- Exato! E enquanto isso, alguns também se envenenarão, complementando sua bebida com tabaco... Continuando o que eu pedi para que notasse, imagina que alguns são do gênero masculino e outros do feminino. Imaginou?
- Sim. Mas e aí?
- Aí que está, meu caro amigo, aí que está!
- Não entendi...
- Pois bem, veja só, é um boteco, um bar, uma birosca, um botequim, uma barraca, seja o nome que seja dado. O que estão fazendo?
- Bebendo...
- Isso é bom ou é mau?
- Creio eu que mau...
- Mau por que?
- Porque o mau geralmente não traz nenhum benefício à saúde...
- Concordo plenamente, concordo plenamente... Mas se não faz bem, por que estão bebendo? Por que estão gastando seu dinheiro (que sabe-se lá como obtiveram), seu tempo e sua saúde?
- Talvez por vício ou ainda, por outro motivo...
- Boa resposta, boa resposta... Mas não totalmente exata...
- ?
- O vício, na verdade, pouco importa. Veja bem, não estou defendendo ninguém pelo motivo de beberem, quero apenas mostrar o porquê pedi para imaginar tal local e circunstância.
- Prossiga.
- Então. Agora façamos o inverso...
- Como assim?
- Pois bem, o boteco não existe mais, a pequena multidão não há também. Agora existe cada ser, seja qual formos imaginar, chegaremos no mesmo ponto...
- Ainda não entendi...
- É simples, muito simples mesmo. Por exemplo, vou escolher um deles, aquele ali mesmo serve. Está bem?
- Pois não...
- Olha seus cabelos brancos, sua barba malfeita, sua roupa não muito nova e nem muito limpa, seus dentes um pouco cariados, suas unhas já pedindo para serem cortadas e sujas também...
- Continue...
- Seus chinelos já um pouco desgastados, sujos como o resto do conjunto. Talvez tenho no bolso um celular que comprou de segunda mão, para ser igual à maioria que existe por aí. De vez em quando ele entra nas redes sociais para rir daquilo que tem que rir, mesmo que não ache tanta graça assim...
- E...
- Agora observemos mais um pouco. Suas mãos cheias de calos, por conta da profissão que possui - é um pedreiro, por exemplo.
- Um pedreiro...
- Sua idade pouco importa, se sabe ler e o que leu até agora, não interessa. Não interessa para quem ele fará alguma obra, só interessa o que vai construir e se por isso alguém pagará um preço quase justo e se não será sacaneado por ele, o que alguns pedreiros acabam fazendo...
-...
- Hoje ele é só isso - um pedreiro. Que mora numa casa em alguma rua deste bairro, desta cidade, deste estado, desta região, deste país. deste continente, deste planetinha.
-...
- Que possivelmente foi traído pela mulher ou por um irmão ou por um amigo. Que já sofreu como a maioria na mão de políticos safados, corruptos, ladrões. Que até agora teve que ir algumas vezes ao cemitério levar algum parente, amigo ou até um desconhecido... Que sabe que um dia chegará sua vez, mas mesmo assim nem gosta de falar nesse assunto...
- Aonde quer chegar?
- Aonde quero? Simples, muito simples... Ao inverso...
- Como assim, o inverso?
- Veja bem, o que eu pedi para que fosse imaginado, é certamente o final. Olhemos o começo. Ele, todos os seres humanos, apenas crianças, que começaram sendo amparadas, cada uma ao seu modo. Algumas em barracos, outras em casas comuns, em casas mais suntuosas ou até em palácios. mas amparadas. Chorando quando queriam alguma coisa, queriam comer, estavam sujas queriam dormir ou sentiam algo desagradável...
- Crianças...
- Sim, crianças, apenas isso, crianças, nada mais do que crianças... E o tempo foi então passando, a maldade, a tristeza, a solidão, todas essas coisas acabaram vindo. Umas viraram assassinos, outras ladrões, outras miseráveis, outras inúteis, outras putas, a ralé do mundo. Enquanto isso outras conseguiram algo menos ruim. E preste atenção: não melhor, apenas menos ruim...
-...
- Um dia todos irão embora, seres e coisas. Para onde? Os homens tentam responder isso. Mas quem realmente o saberá?
- Triste, mas verdadeiro...
- Ah! Agora entendeste o porquê não gosto de responder perguntas? Mesmo assim entendeste a minha resposta?
- Acho que sim...
- Então, faz logo o que vieste fazer. O dia já veio, eles nem sempre são amigos...






